1.2.08

Ai, que saudade!


“Pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa”. O civilizado Jacinto da Paris do século XIX deixou para trás a tranqüila serra de Tormes, em Portugal, para desbravar a Cidade das Luzes na esperança de saborear plenamente a delícia de viver. “Não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a Cidade”, dizia Jacinto para seu fiel amigo. As “pequeninas misérias duma Civilização deliciosa” abria o seu apetite. Entretanto, mesmo em meio a este gosto punjente com aroma de novidades, que lhe garantia o status de civilizado, o pobre Jacinto reclamava: “Paris está perdendo sua superioridade. Já não se janta mais em Paris!”.

A saudade da vida simples de Tormes aguardava o momento certo para saciá-lo. Volta e meia, uma pimenta ardia em sua consciência: “Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de criar estava esgotado. Só restava agora, o divino prazer de destruir”. E sorvendo o champanhe coalhado em sorvete, maldizia o Século, a Civilização. Para compreender a tristeza em que se metera sua vivacidade, o amigo Zé Fernandes, não tardava em dar a receita: o retorno às serras de Tormes. Longe da civilização seria possível encontrar sentido, prazer e gosto. “O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua ilusão e só nela tem a fonte de toda a sua miséria”, retrucava o refinado Príncipe de Tormes.

A sua falta de apetite pela vida, uma desconfortante sensação de saciedade, foi revertida após o encontro com as delícias da serra. “Santo Deus! Há anos não sinto esta fome!”, declarou ao se deparar com uma fumegante travessa de arroz com favas. Seu amigo Zé Fernandes observou que Jacinto “parecia saciar uma velhíssima fome e longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos”. O motivo de tamanho entusiasmo estava na simplicidade do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, temperado com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, sem falar no vinho de Tormes, descrito como fresco, esperto, seivoso, “entrando mais na alma que muito poema ou livro santo”.

A experiência de Jacinto, personagem do livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, aponta que a saudade é um tipo de fome, que é saciada pela memória gustativa. Através do gosto, as lembranças podem ser aquecidas e, quando entram em ebulição, revelam o sabor da vida. A comida sacia a alma, alimenta a memória. E, partindo da afirmação de Bergson, que diz que toda consciência é memória - conservação e acumulação do passado no presente -, pode-se destacar o papel da comida nessa construção e preservação da identidade.

As madeleines com chá do escritor francês Marcel Proust recobrou suas memórias de infância e resultou num dos maiores clássicos da literatura, Em Busca do Tempo Perdido. E Jesus Cristo instituiu o pão e o vinho como elementos sagrados para ativar a memória dos cristãos. Esses são alguns exemplos de como a memória aliada à comida é capaz de provocar transformações seja na vida pessoal, nas pessoas que estão em volta ou até para toda humanidade.

A saudade, verbete privilegiado da língua Portuguesa, é comemorada no dia 30 de janeiro. E, gastronomicamente falando, poderia ser definida como o caderno de receitas do cérebro com direito a anotações, observações e rabiscos à caneta. Funciona com o detalhamento de uma ficha técnica, utlizada pelos chefs de cozinha. Basta passar um aroma, que a memória codifica o receituário da saudade.

Confort Food indutrializadoA comida de infância não se restringe apenas aos pratos das mães, tias ou avós. O conceito de Confort Food (comida que conforta) também se estende aos alimentos industrializados. Prova disso é que as décadas de 70 e 80 trouxeram guloseimas que entraram para a história da vida de muitas pessoas. E, basta revê-los nas prateleiras dos supermercados ou comentar numa roda de amigos, para vir à tona deliciosas lembranças.

Um dos ícones gastronômicos dos anos 80 foi o Deditos, da Nestlé. Os biscoitos em formato de palitinho coberto com chocolate aguçavam o paladar da garotada que até hoje, mais crescidinhos, não dispensam este confort food industrializado. Segundo a assessoria de imprensa da Nestlé, o retorno do biscoito veio atender aos apelos nostálgicos dos fãs, manifestado até em comunidades no Orkut como "Corrente volta Deditos” e “Eu adoro Deditos”. O produto foi citado no Almanaque 80 (Ediouro) como um marco da década. Mantendo o mesmo sabor, ele voltou em 2007 numa embalagem mais moderna, prática e maior. O lançamento foi feito nos mercados da região Sul, Sudeste e Centro-oeste. A notícia da volta do Deditos, agora na versão sabor de infância, se espalhou logo, principalmente no boca a boca (literalmente). Agora, a prateleira dos biscoitos tem mais um motivo para uma visita periódica. É a deliciosa pílula da saudade.

Outro industrializado que saiu de linha, mas não retornou, foi o Mirabel. Há citações na internet definindo o waffle como um marco da engenharia alimentar moderna. “Nunca um biscoito waffle foi tão homogêneo e compacto, tão doce e suave. Sua crocância mesclava-se perfeitamente com sua estabilidade, ao contrário de seus concorrentes que se desmanchavam em um dia de calor. Seu tamanho era perfeito, duas mordidas seguidas de longos segundos de degustação. Até a quantidade era bem pensada, oito por pacote, ideal para dividir com aquela pessoa amada, o "banquete a luz de velas" das paixões dos pátios escolares. Feito com o mais nobre dos chocolates, o mais puro dos waffles e um incrível ingrediente secreto, talvez amor (ou provavelmente um substituto químico). Mirabel é uma utopia, não nasce em árvores pois nem mesmo a louvável mãe natureza seria capaz de combinar tão poucos ingredientes com tamanha perfeição.”, diz o texto Tributo ao Mirabel. O wafle também tem comunidades no Orkut com até 3.500 membros.

Fabricado pela Adams, foi sucesso entre jovens e crianças da década de 70, 80 e 90, saindo de linha em 2001. Apesar dos protestos, não há possibilidade de retorno. Aliás, os funcionários da empresa nem sequer lembram do biscoito que ficou na memória de uma geração. A atendente do 0800 153045 não sabia do que se tratava. A assessoria de imprensa informou que desconhecia o produto e passou a ligação para o setor de marketing, que só caía numa secretária eletrônica. Parece que o gosto do Mirabel vai ficar só na memória de quem saboreou por três décadas o lanchinho. Disponível ou não no mercado, o confort food industrializado representa as melhores lembraças da infância. E sempre que o assunto "saudade" entra na mesa, a comida - artesanal ou industrial - é o prato principal porque nutre e alimenta a alma.

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