1.2.08

Menu indigesto em Davos


A produção e o abastecimento de alimentos foram temas de destaque na 38ª edição do Fórum Econômico Mundial de Davos (Suíça), que aconteceu na semana passada. O encontro, que reuniu cerca de 30 chefes de Estado e um público estimado em 2.500 pessoas, apresentou os desafios da economia global frente a problemas como a crise dos mercados, a iminente recessão dos Estados Unidos e o crescimento populacional. Entre os painéis dedicados à alimentação estavam “Repensando a cadeia alimentar” e “Nós somos bio-imprudentes”.

Uma dos temas polêmicos do encontro foi a alta dos preços dos alimentos, que está causando uma série de problemas em países emergentes. Kamal Nath, ministro do Comércio na Índia, por exemplo, advertiu que o custo da comida duplicou este mês, justamente quando havia a expectativa de que 25 milhões de pessoas teriam condições de fazer entre uma e duas refeições. “No próximo ano vamos discutir isso em Davos”, afirmou.

Os analistas prevêem que os preços dos produtos agrícolas em todo o mundo devem aumentar, principalmente os cereais, devido ao índice de impostos para exportação, a demanda global e especulação. O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, também soou o alarme destacando que o custo das necessidades nutricionais básicas subiu acentuadamente em muitos países como a África. “Há quinze países vulneráveis à alta dos preços de energia e alimentos. Precisamos de alguns esforços direcionados a estas populações”, disse.

Essa alta se deve a expansão do cultivo de culturas como milho e cana-de-açúcar destinadas ao biocombustível, o que gerou fortes críticas as novas fontes de energia. Antes visto como uma “solução verde” para suprir as necessidades energéticas mundiais, o biocombustível foi o tema do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, presidido por Rajendra Pachauri, Prêmio Nobel da Paz. “Sempre que a produção de combustíveis entrar em conflito com a produção de alimentos, especialmente em um momento de alta dos preços de produtos alimentícios, estamos num território difícil. Em geral, não estou satisfeito com o desvio de áreas de produção de alimentos para combustível”, disse aos jornalistas.

Para Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, o banco Central Americano, os preços de alimentos subiram em 2007 de forma preocupante no mundo inteiro. O mercado aumentou a produção para tentar equilibrar essa demanda crescente (a produção mundial de cereais de 2007 foi de 4,6% maior que a de 2006), mas em volume foi insuficiente. Dois fatores estão por trás da alta da inflação de alimentos: mais bocas para alimentar e a procura por uma energia mais limpa, que ocupa o espaço das plantações. Este impacto simultâneo nos preços recebeu o nome de agflação (agricultura + inflação).

O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar, que pode gerar tanto etanol como açúcar e derivados. Almir Barbassa, diretor-financeiro da Petrobrás, declarou que com a alta do Petróleo, é mais vantajoso direcionar a cana para o etanol ao invés de produção de alimentos. “Os agricultores têm o direito de fazer o que quiser com os seus produtos. É uma escolha dele e não dos mercados”. Talvez esta não tenha sido uma resposta adequada, visto que historicamente o Brasil enfrentou crises de abastecimento por causa do desequilíbrio entre exportações e agricultura de subsistência, gerando maior importação de alimentos. Priorizar os campos para exportação da cana pode desencadear uma crise na agricultura local e, consequentemente, na economia. Vide a história da agricultura e do abastecimento no Brasil.

E, para falar de comida, é preciso comer. Sentir no paladar o preço pago por esta crise mundial da alimentação, mas sem indigestão, é claro, para melhor fluição das idéias. Por isso, a chef Alice Waters cumpriu sua missão em Davos. Ao lado dos chefs David Lindsay e Jennifer Sherman, o trio preparou um jantar com o tema “Comida – Um novo mundo saudável”, utilizando ingredientes locais, fornecidos por agricultores, pescadores, padeiros, viticultores, entre outros, da Suíça.
Os chefs colocaram em pratica o conceito Food Miles, buscando os alimentos mais próximos para fomentar ainda mais as discussões. O jantar aconteceu no dia 23 de janeiro, no Hotel Schatzalp. À mesa, nomes de peso como o jornalista Michel Pollan, Orville Schell e Peter Sellars, que deram sua contribuição ao evento. No menu, sopa de alcachofra com cominho e alho; e polenta de milho vermelho e vegetais grelhados.

Para lidar com os desafios da alimentação contemporânea, é preciso analisar a comida como um gênero de fronteira, que toca o político, o econômico, o social e o cultural. A proposta de desaceleração do crescimento mundial deve servir para avaliar quais são esforços necessários para solucionar a crise energética com o compromisso de preservar a cadeia alimentar e a sustentabilidade do planeta. Comida serve para pensar, agir e transformar.

Ai, que saudade!


“Pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa”. O civilizado Jacinto da Paris do século XIX deixou para trás a tranqüila serra de Tormes, em Portugal, para desbravar a Cidade das Luzes na esperança de saborear plenamente a delícia de viver. “Não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a Cidade”, dizia Jacinto para seu fiel amigo. As “pequeninas misérias duma Civilização deliciosa” abria o seu apetite. Entretanto, mesmo em meio a este gosto punjente com aroma de novidades, que lhe garantia o status de civilizado, o pobre Jacinto reclamava: “Paris está perdendo sua superioridade. Já não se janta mais em Paris!”.

A saudade da vida simples de Tormes aguardava o momento certo para saciá-lo. Volta e meia, uma pimenta ardia em sua consciência: “Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de criar estava esgotado. Só restava agora, o divino prazer de destruir”. E sorvendo o champanhe coalhado em sorvete, maldizia o Século, a Civilização. Para compreender a tristeza em que se metera sua vivacidade, o amigo Zé Fernandes, não tardava em dar a receita: o retorno às serras de Tormes. Longe da civilização seria possível encontrar sentido, prazer e gosto. “O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua ilusão e só nela tem a fonte de toda a sua miséria”, retrucava o refinado Príncipe de Tormes.

A sua falta de apetite pela vida, uma desconfortante sensação de saciedade, foi revertida após o encontro com as delícias da serra. “Santo Deus! Há anos não sinto esta fome!”, declarou ao se deparar com uma fumegante travessa de arroz com favas. Seu amigo Zé Fernandes observou que Jacinto “parecia saciar uma velhíssima fome e longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos”. O motivo de tamanho entusiasmo estava na simplicidade do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, temperado com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, sem falar no vinho de Tormes, descrito como fresco, esperto, seivoso, “entrando mais na alma que muito poema ou livro santo”.

A experiência de Jacinto, personagem do livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, aponta que a saudade é um tipo de fome, que é saciada pela memória gustativa. Através do gosto, as lembranças podem ser aquecidas e, quando entram em ebulição, revelam o sabor da vida. A comida sacia a alma, alimenta a memória. E, partindo da afirmação de Bergson, que diz que toda consciência é memória - conservação e acumulação do passado no presente -, pode-se destacar o papel da comida nessa construção e preservação da identidade.

As madeleines com chá do escritor francês Marcel Proust recobrou suas memórias de infância e resultou num dos maiores clássicos da literatura, Em Busca do Tempo Perdido. E Jesus Cristo instituiu o pão e o vinho como elementos sagrados para ativar a memória dos cristãos. Esses são alguns exemplos de como a memória aliada à comida é capaz de provocar transformações seja na vida pessoal, nas pessoas que estão em volta ou até para toda humanidade.

A saudade, verbete privilegiado da língua Portuguesa, é comemorada no dia 30 de janeiro. E, gastronomicamente falando, poderia ser definida como o caderno de receitas do cérebro com direito a anotações, observações e rabiscos à caneta. Funciona com o detalhamento de uma ficha técnica, utlizada pelos chefs de cozinha. Basta passar um aroma, que a memória codifica o receituário da saudade.

Confort Food indutrializadoA comida de infância não se restringe apenas aos pratos das mães, tias ou avós. O conceito de Confort Food (comida que conforta) também se estende aos alimentos industrializados. Prova disso é que as décadas de 70 e 80 trouxeram guloseimas que entraram para a história da vida de muitas pessoas. E, basta revê-los nas prateleiras dos supermercados ou comentar numa roda de amigos, para vir à tona deliciosas lembranças.

Um dos ícones gastronômicos dos anos 80 foi o Deditos, da Nestlé. Os biscoitos em formato de palitinho coberto com chocolate aguçavam o paladar da garotada que até hoje, mais crescidinhos, não dispensam este confort food industrializado. Segundo a assessoria de imprensa da Nestlé, o retorno do biscoito veio atender aos apelos nostálgicos dos fãs, manifestado até em comunidades no Orkut como "Corrente volta Deditos” e “Eu adoro Deditos”. O produto foi citado no Almanaque 80 (Ediouro) como um marco da década. Mantendo o mesmo sabor, ele voltou em 2007 numa embalagem mais moderna, prática e maior. O lançamento foi feito nos mercados da região Sul, Sudeste e Centro-oeste. A notícia da volta do Deditos, agora na versão sabor de infância, se espalhou logo, principalmente no boca a boca (literalmente). Agora, a prateleira dos biscoitos tem mais um motivo para uma visita periódica. É a deliciosa pílula da saudade.

Outro industrializado que saiu de linha, mas não retornou, foi o Mirabel. Há citações na internet definindo o waffle como um marco da engenharia alimentar moderna. “Nunca um biscoito waffle foi tão homogêneo e compacto, tão doce e suave. Sua crocância mesclava-se perfeitamente com sua estabilidade, ao contrário de seus concorrentes que se desmanchavam em um dia de calor. Seu tamanho era perfeito, duas mordidas seguidas de longos segundos de degustação. Até a quantidade era bem pensada, oito por pacote, ideal para dividir com aquela pessoa amada, o "banquete a luz de velas" das paixões dos pátios escolares. Feito com o mais nobre dos chocolates, o mais puro dos waffles e um incrível ingrediente secreto, talvez amor (ou provavelmente um substituto químico). Mirabel é uma utopia, não nasce em árvores pois nem mesmo a louvável mãe natureza seria capaz de combinar tão poucos ingredientes com tamanha perfeição.”, diz o texto Tributo ao Mirabel. O wafle também tem comunidades no Orkut com até 3.500 membros.

Fabricado pela Adams, foi sucesso entre jovens e crianças da década de 70, 80 e 90, saindo de linha em 2001. Apesar dos protestos, não há possibilidade de retorno. Aliás, os funcionários da empresa nem sequer lembram do biscoito que ficou na memória de uma geração. A atendente do 0800 153045 não sabia do que se tratava. A assessoria de imprensa informou que desconhecia o produto e passou a ligação para o setor de marketing, que só caía numa secretária eletrônica. Parece que o gosto do Mirabel vai ficar só na memória de quem saboreou por três décadas o lanchinho. Disponível ou não no mercado, o confort food industrializado representa as melhores lembraças da infância. E sempre que o assunto "saudade" entra na mesa, a comida - artesanal ou industrial - é o prato principal porque nutre e alimenta a alma.